sábado, outubro 06, 2007

Metropolitano mortal

Uma enorme bota preta pisou-me imperativamente o dedo pequeno do pé. Um cotovelo bicudo como uma espada atingiu-me sadicamente a cintura. Um queixo borbulhosamente oleoso atirou-se contra a minha nuca. Os meus cabelos embaraçaram-se ofendidos enquanto um nariz perdido lutava para fugir daqueles fios compridos que o prendiam. Senti um punhado de cabelos ser arrancado brutalmente do meu couro cabeludo. Um joelho enfadonho empurrou-me neuroticamente para a frente e o meu nariz esborrachou-se rapidamente contra um sovaco grande e fedorento enquanto o meu corpo era comprimido entre um esqueleto pontiagudo e um monte de carne tenra.
Estava no METRO!
O comboio arrancou suavemente permitindo que o meu corpo deslizasse bizarramente junto com os outros. Roguei pragas. Fechei os olhos para os abrir logo de seguida quando um pingo morno e sujo, que deslizava como um patim ao longo do sovaco grande, veio pousar na ponta do meu nariz. Era um abuso. Que direito tinha aquele pingo desconhecido de repousar na ponta do meu nariz sem sequer pedir autorização? Resolvi, pois, impor a minha indignação e abanei a cabeça como fazem os cães quando se sacodem da água.
O pingo levantou voo do meu nariz escolhendo como poiso um lóbulo preto de uma orelha que estava a um metro de distância. Os olhos flamejantes do dono da orelha pousaram em mim. Deitaram-me faíscas amarelas que paralizaram os meus olhos e fizeram tremer as minhas pernas. A boca que pertencia àqueles olhos arfava e babava-se à medida que um polegar onde se viam ácaros esmagava contra um indicador o fatídico pingo. Foi o fim deste.
Quanto ao assassino do pingo, começou a mexer-se na minha direcção. Tentei sair dali mas o máximo que consegui foi enterrar-me ainda mais na carne tenra que estava atrás de mim. As portas da carruagem abriram-se e o assassino do pingo deitou-me um sorriso e desapareceu. Mas não sozinho. Também o esqueleto pontiagudo, a carne tenra e o sovaco grande desapareceram.
Os meus olhos rasgaram um lugar. Corri. Sentei-me. O lugar estava quente. À minha frente um bébé rebentava as cordas vocais à medida que as suas bochechas se iam colorindo de um vermelho púrpura salpicado de pintas verdes escuras. A um canto uma mulher com pelos na cara coça uma verruga na testa. Um espirro barulhento chamou a atenção dos meus tímpanos: duas crianças debatiam-se por causa de um punhado de cabelos que devia ter pertencido a alguém. Enfim, reconheci aquele punhado de cabelos. Junto à porta um rapaz careca mas de peito pelado como um macaco mastigava impiedosamente uma pastilha ao mesmo tempo que fazia balões quadrados que se iam rebentando uns após os outros.
Atónita com o cenário, achei melhor sair.
As portas abriram-se mais uma vez e uma bota da tropa correu na direcção das minhas solas e estendeu-me ao comprido no chão. Ouvi o comboio ir-se embora levando o rapaz dos balões, o bébé, as crianças e a velha da verruga e, quando levantei a cabeça e olhei em volta, um puto encostado à parede ria-se de mim.
A minha cabeça caiu. Senti as pálpebras fecharem-se-me e o sangue a abanar-me furiosamente as veias. Tentei levantar-me e não consegui. O meu corpo estremeceu como um sismo e um grande espasmo fez saltar o meu coração vermelho cá para fora.
O resto não me lembro.





Sofia Anjos
Debaixo do Bulcão poezine
Número 5 - Almada, Setembro 1997

(Ilustração: Luísa Trindade)

1 comentário:

Madalena Barranco disse...

Olá António e Sofia, hehehe - essa crônica é ótima e porque não dizer: tragicômica!!! Puxa, a situação é bem parecida à linha leste-oeste do metrô paulistano... Beijos aos dois.